Imprensa em Questão
BARRACO NO SUPREMO - Versão negligente da polêmica no STF
Por Maurício Caleiro em 28/4/2009
Dois dias depois (sexta, 24/4) da discussão entre os ministros do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes (que atualmente preside o órgão), a Folha de S.Paulo publicou editorial ("Altercação no STF") em que se posiciona ante o episódio – tema, ainda, de dois de seus colunistas e ao qual dedica cinco matérias no caderno "Brasil". A cobertura, embora farta em material, é, como veremos, estreita em abordagens, além de sonegar ao leitor informações essenciais para que componha um quadro amplo do conjunto de fatores que levaram ao enfrentamento no STF.
Se o sentido da presença de um sorridente Gilmar Mendes – ladeado pelo presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP) – na foto de capa da edição, encimando a manchete "Após discussão, presidente do STF nega crise institucional", despertara dúvidas no leitor, o editorial as dirime. Eis sua abertura:
"O ministro Joaquim Barbosa excedeu-se na áspera discussão travada anteontem com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes. Não se justificam os argumentos `ad hominem´ e a linguagem desabrida empregada (...)".
À responsabilização inequívoca e única de uma das partes em litígio, segue-se um texto em que, ao contrário do que manda a norma de redação de editoriais, não há ponderação ou busca pelo equilíbrio argumentativo, analisando as razões e desrazões dos dois lados; a contextualização fornecida se resume à recriação – como se verá, manipulada – da discussão entre os dois ministros, sem nenhuma alusão às atitudes pregressas de Mendes e ao ânimo em relação a elas verificável no próprio Judiciário e na opinião pública.
Fator racial
Após uma descrição um tanto minuciosa do diálogo que precedeu o momento mais crítico da discussão, o editorial prossegue:
"Foi no ato seguinte, entretanto, que o ministro Barbosa abandonou a compostura e rompeu de vez o protocolo. Acusou Mendes de estar `destruindo a Justiça deste país´ e, num rompante descabido, afirmou que o presidente do tribunal não falava, ali, `com seus capangas de Mato Grosso´".
Para o jornal, portanto, Barbosa não teria apenas "se excedido" de forma unilateral, mas perdido a compostura – e por um motivo banal, já que o "objeto do debate" seria tão-somente "uma lei paranaense".
O leitor atento talvez tenha se dado conta de que, apesar de tão detalhada quanto à reconstituição dos diálogos preliminares à altercação entre os dois ministros – e de seu desfecho –, há uma omissão gritante na reconstrução do incidente pelo editorial. Essa elipse diz respeito, justamente, ao momento em que Barbosa clama Mendes a sair às ruas, ouve a resposta de Mendes afirmando que na rua está e retruca dizendo: "Vossa excelência não está na rua, vossa excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro".
Não se trata de omissão casual ou inocente: sua função é desobrigar o editorialista a se referir ao mal-estar na sociedade e em setores do próprio ambiente judiciário causado pelos efeitos da superexposição midiática de Mendes e a decisões polêmicas que tomara, como a concessão do segundo habeas corpus ao banqueiro Daniel Dantas. Ou seja: é sonegação de informação visando manipular o sentido dos fatos.
É importante prestar atenção a essa estratégia empregada pelo editorial porque ela tende a ser, parcial ou integralmente, repetida por outros veículos de mídia. Trata-se de um estratagema que inclui o desprezo pela opinião pública, mas seu conceito-chave é a descontextualização – pois, esvaziando o ato de Barbosa de qualquer motivação anterior que o justifique, o que se tem é um ministro do mais alto tribunal exaltado e muito nervoso em meio a um debate corriqueiro sobre questiúnculas jurídicas – quais mesmo? Acrescente-se o fato de o ministro ter sido indicado por Luiz Inácio Lula da Silva e, numa sociedade racista como a brasileira, o fator racial e o potencial de exploração sensacionalista do caso – contra o ministro – cresce consideravelmente.
Regra de revezamento
No restante do editorial, são elencadas platitudes relativas ao funcionamento da Justiça e do STF, incluindo – baseado em não se sabe quais informações – o wishful thinking segundo o qual "é um evidente exagero afirmar que o episódio seja sintoma de crise no STF". Não deixa, porém, de ser curioso notar que, em relação ao ponto que dois articulistas deste Observatório – que de forma alguma se caracterizam pelo radicalismo – apontaram como a referência que mais deveria interessar à imprensa no episódio – os tais capangas matogrossenses –, o editorial se limita a criticar Barbosa pelo "rompante descabido" de mencioná-lo, sem demonstrar nenhum espanto ou interesse em investigar a denúncia implícita. Limita-se a ralhar – é precisamente este o verbo – contra a destemperança do ministro.
O esforço para denegrir a imagem de Barbosa prossegue na cobertura do fato pelo jornal. No caderno "Brasil", longa matéria assinada por Andréa Michael e Felipe Seligman, intitulada "`Não há crise, não há arranhão´, diz Mendes", alega que "a Folha apurou que a intenção do ministro [Barbosa] era sinalizar para Mendes, publicamente, que não aceitava ser tratado como um subalterno". Ou seja, desprezando todo um contexto muito mais amplo e de motivações e consequências muito mais sérias – com implicações para a ordem jurídica do país e para a avaliação que a sociedade faz do Poder Judiciário e do STF – a matéria tenta tornar pessoal a questão, através da caracterização do ministro Joaquim Barbosa como um complexado rancoroso, motivado pelo ego ferido.
Continuando a contrariar as normas do bom jornalismo – e do Manual de Redação – a matéria ouve apenas um dos ministros (difícil adivinhar qual?). O único arremedo de contextualização que oferece é quanto à hiperexposição midiática de Mendes, vocalizada por um assessor do Planalto. A opinião pública sobre o caso é completamente desprezada pela cobertura da Folha,não por falta de fontes: para ficar em apenas um exemplo, em votação promovida pelo portal UOL logo após a discussão, o apoio a Barbosa chegou a superar os 95%. Há uma grande chance, portanto, que ouvi-la significasse corroborar a afirmação do jornalista Luis Nassif quanto ao "descrédito dos jornalões" causado pela cobertura do affair Gilmar Mendes: "Jamais vi um divórcio igual entre a linha dos jornais e o pensamento do leitor".
Há diversos outros aspectos aparentemente menores na cobertura do caso que mereceriam comentário, mas, em respeito à paciência do leitor, limitemo-nos ao fato de a Folha – como a maioria dos órgãos da mídia corporativa – chamar Barbosa de "ministro" do STF e Gilmar Mendes de "presidente" da instituição, sugerindo uma hierarquia que não é estanque nem em méritos baseada, mas temporária e determinada por regra de revezamento. Desnecessário apontar que tal omissão colabora para tornar crível a tese do "subalterno de orgulho ferido" sugerida pelo jornal.
Anacronismo autoritário
Na mesma edição de sexta-feira (24/4), a única exceção a essa cobertura despudoradamente tendenciosa da discussão no STF vem de um texto opinativo do usualmente comedido Frederico Vasconcelos que, uma vez mais equilibrado, destoaria totalmente da linha do jornal não fosse o título que recebeu e que absolutamente não condiz com o conteúdo da análise: "Credibilidade versus populismo". Você, atento leitor, já adivinhou quem o outrora prestigiado jornal paulista julga ser digno de crédito e quem seria o populista, pois não?
Por fim, é importante ressalvar ser salutar que a linha editorial de um jornal mantenha uma prudente distância em relação à opinião pública – sem procurar doutriná-la ou guiá-la nem, por outro lado, submeter-se a seus humores e tendências. Ignorá-la, porém, confinando-a à exígua e censurada seção de cartas, mas sem sequer levar em conta – nem que seja para refutar – suas convicções predominantes, é algo bem diferente, e equivale a menosprezá-la como interlocutor e como sujeito político.
Num momento em que o jornal da Alameda Barão de Limeira admite práticas que não coadunam com a ética jornalística e não podem ser consideradas mero "erro", pois denotam má-fé, essa relação com a opinião pública – das ruas ou, principalmente, da internet – soa anacronicamente autoritária, chamando à reflexão sobre o futuro da publicação.
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